O sistema de invalidades
processuais foi estruturado em atenção a sua natureza instrumental, de sorte
que ao aplicador fosse possível sanar as irregularidades do ato ou do
procedimento em benefício da atividade jurisdicional. Atento a esta
peculiaridade, argui-se, com amparo nas irretocáveis lições de Calmon de Passos[1]
que a invalidação de qualquer ato ou procedimento, não se opera apenas por si,
sendo necessária a decretação judicial para que cessem os efeitos do ato
inválido.
O sistema processual de
invalidação reconhece atualmente três modalidades de sanção para o ato que
tenha sido praticado supostamente em desacordo com as exigências da lei. São
elas: a nulidade absoluta, que se aplica pela conjugação de dois fatores, qual
sejam: a desconformidade do ato para com uma norma cogente e a previsão legal
para que sobre ele incida a pena de nulidade absoluta. Este tratamento mais
severo se justifica pela preocupação jurídica que normas previstas em prol do
interesse público sejam observadas com maior atenção, o que autoriza ao
magistrado a reconhecê-la de ofício. Exemplo de perfeita harmonia com essa
espécie de invalidade se identifica em processo cujo ato de citação, essencial
ao contraditório e ao caráter democrático do instrumento jurisdicional, não
tenha sido observado pelo órgão judicial. A nulidade relativa se traduz pela
prática de ato ou procedimento que afronte norma cogente definida em atenção aos
interesses privados, o que afasta do legislador a motivação para imputar-lhe
uma pena mais severa, e remete aos particulares a iniciativa para provocar o
poder judiciário a emitir um pronunciamento e decretar a sua nulidade. Já a
anulabilidade, pode ser identificada como a sanção conferida a normas meramente
dispositivas e direcionadas eminentemente aos interesses das partes, o que não
permite a manifestação judicial sem a necessária e anterior provocação das
partes.
Como se observa, a teoria
das invalidades processuais não se enquadra nos parâmetros da teoria material,
vez que ao considerar a natureza instrumental do processo, permite que mesmo a
norma cogente, como as estabelecidas pelo CPC, possa admitir alguma violação
sem que isso implique invalidação e comprometimento do ato processual. Assim,
por exemplo, mesmo havendo determinação das espécies e dos procedimentos para a
prática do ato citatório, nada impede que por outra via que não aquela
estabelecida pelo legislador, o ato convalesça e possa produzir o efeito
esperado. Esta, alias, seria a situação decorrente do comparecimento espontâneo
do réu, que mesmo sem ter sido notificado por qualquer meio legal, toma
conhecimento da relação processual por vias outras, como o aviso informal de
quem por ventura trabalhe no cartório ou auxilie o juízo onde se tem instaurado
o processo, pois ao saber disto e comparecer espontaneamente para estar ciente,
o ato citatório, mesmo que praticado por via alternativa, terá alcançado a sua
finalidade, será válido e poderá gozar dos efeitos legais. Sobre o tema, dispõe
o artigo 151 do NCPC: “Os atos e os termos processuais
não dependem de forma determinada, senão quando a lei expressamente a exigir,
considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a
finalidade essencial”.
Esta flexibilização, característica
da teoria aplicada aos atos processuais, ampara as suas aplicações nos
princípios da causalidade e instrumentalidade das formas, que por apego à
didática, serão sumariamente comentados a seguir.
A causalidade permite ao
aplicador do direito aproveitar tudo aquilo que não apresente vínculo com o ato
viciado, de sorte que: se a primeira metade do procedimento transcorrer em
harmonia com as exigências da lei, sendo o vício constatado apenas no início da
segunda metade, somente os atos posteriores e dependentes serão prejudicados.
A instrumentalidade das formas revela a
necessária percepção de que o apego às exigências procedimentais não pode
superar sua finalidade, pois esta postura poderia comprometer exatamente o
direito que por meio do procedimento se quer proteger. Por isso, quando o
procedimento ou o ato a ser realizado se revelarem inadequados às
peculiaridades da causa, deverá o juiz, ouvidas as partes e observados o
contraditório e a ampla defesa, promover o necessário ajuste.
Esta disposição pelo aproveitamento
do ato processual também se aplica aos casos em que o juiz puder decidir em
favor da parte supostamente beneficiada pela invalidação, que não poderá ser
requerida por quem lhe deu causa. A esta altura, pode-se afirmar que a teoria
das nulidades sofre a influência direta dos princípios da instrumentalidade,
boa-fé, causalidade e finalidade, justificando-se com isso a ideia de que não
há nulidade sem prejuízo, nem invalidação que se opere de ofício.
No sentido do texto,
Sidinei Amendoeira Junior, citando Calmon de Passos, afirma que:
“Verificada
a inadequação do ato ao modelo legalmente previsto, o ato ainda não é, por si
só, nulo; deve, pelo visto, ser decretada a nulidade. Se a imperfeição do ato
for relevante, o juiz decretará sua nulidade; até então o ato é apenas
imperfeito. A partir daí, em sendo nulo e inválido, o ato, de duas uma: ou o
juiz manda que o ato seja novamente praticado, sanando-se os defeitos de sua
repercussão, ou chega à conclusão de que isto não é possível, e neste último caso,
temos a insanabilidade” [2].
De fato, este
apego exacerbado ao procedimentalismo, que a época se justificou pela
necessidade científica de afirmar a independência da seara processual, poderia colocar
juízes como meros controladores das exigências de forma, em detrimento dos
valores sociais que sob a legislação vigente, não estavam contemplados pelo
projeto constitucional ou pela redação do “atual” código de processo civil, vez
que, nesta quadra da história, articulam-se coerentemente: uma Carta constitucional
ditatorial, uma ideologia liberal-individualista e a correlata ausência de
faticidade nos textos jurídicos. Nesta época, aplicar com literalidade um
procedimento ideologicamente construído por um positivismo normativo,
comprometeria o anseio de uma sociedade que para muito além de interpretações
literais, de há muito reclama por respeito e dignidade.
A finalidade
primordial da atividade jurisdicional de restabelecer o equilíbrio da ordem
jurídica e eliminar a crise de direito material, portanto, não se poderia
alcançar somente pela aplicação direta do texto.
Sobre o
tema, Bedaque vai dizer que:
“A existência do processo é justificada pelos escopos que ele
visa a alcançar, não pela forma de que se revestem seus atos. A observância da
técnica, portanto, representa exigência inafastável do sistema apenas se
imprescindível à consecução dos objetivos buscados. A legitimidade do processo
reside na eliminação da crise de direito material com segurança e celeridade,
não na forma adotada para que tal efeito se produza” [3].
A
instrumentalidade das formas, que há seu tempo contribuiu como importante
veículo de adequação entre texto e anseio social, hoje deve ser compreendida pela
ótica de um novo momento constitucional, pois ao quanto aqui já se pôde
afirmar, sentidos não são delimitados sem a influência do contexto histórico.
Sob esta perspectiva,
é imperioso considerar que a reintrodução da faticidade, a adoção do
referencial de isonomia material e a construção de um projeto constitucional
firmado em regras e princípios, representam um novo horizonte para a atividade
hermenêutica, com evidentes reflexos na percepção da instrumentalidade
processual. Vejamos, pois, suas nuances mais evidentes.
De imediato,
há que se considerar que regras e princípios não são articulados isoladamente,
vez que as regras constitucionais e também as regras de procedimento, hoje são
concebidas à luz de um princípio ou de um valor, consagrado democraticamente no
projeto social de 1988. Não se pode mais imaginar que regras processuais sejam
previstas sem a influência dos valores sociais ou mesmo afirmar, em nosso
tempo, que o procedimento se estabeleça em descompromisso dos direitos que
pretende assegurar. Não se vive mais o momento liberal-individualista, ao
revés, Direito e Moral, neste nosso Estado Democrático Constitucional são agora
co-originários. Se isto é verdade, há que se entender que por traz de cada
regra ou procedimento atua a referência histórica constitucional e em função
disto, pode-se afirmar que os valores desta atual sociedade, muitas vezes
consagrados por princípios, atuam diretamente na redação de cada texto, bem
como não concepção de sua interpretação. É dizer: há sempre um princípio em
cada regra, pois esta se concebe, interpreta e aplica por influência daquele.
Outra
constatação: não há necessária hierarquia entre princípios e regras, vez que o
critério adotado como elemento de percepção é semântico, de sorte que
princípios apresentam maior vagueza e em função disso permitem um exercício
hermenêutico mais amplo do que regras, pois estas, em função da maior densidade
semântica se prestam a regular diretamente o caso concreto. Em consequência
disto, havendo conflito aparente entre regra e princípio de mesma ordem,
defendemos, prevalece a regra, que já de início estabelece com maior
especificidade a resposta adequada para o caso, sem os riscos de exercícios
arbitrários na construção da norma, que aqui se apresenta como o resultado da
interpretação.
Assim,
violar a regra é violar reflexamente um princípio, e deixar de aplicar o
procedimento aprovado pela representação legítima do poder legislativo, a um só
tempo compromete o valor da democracia, causa insegurança jurídica e retoma
discursos de instrumentalidade sem a correta percepção da atualidade.
Portanto,
“não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer “à risca
o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da distinção
entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga
(positivismo primitivo). No primeiro caso, a moral ficava de fora; agora, no
Estado Democrático de Direito, ela é co-originária. Portanto – e aqui me
permito invocar a “literalidade” do art. 212 do CPP –, estamos falando, hoje,
de uma outra legalidade, uma legalidade constituída a partir dos princípios que
são o marco da história institucional do direito; uma legalidade, enfim, que se
forma no horizonte daquilo que foi, prospectivamente, estabelecido pelo texto
constitucional (não esqueçamos que o direito deve ser visto a partir da
revolução copernicana que o atravessou depois do segundo pós-guerra).”
A falta de atualização hermenêutica, neste ponto, compromete
seriamente as conquistas do Estado Democrático, pois autoriza, em nome de um
ideal de instrumentalidade já dissonante de nossa realidade, que regras sejam
afastadas arbitrariamente em nome de princípios processuais. Esta postura,
pretensamente calcada em teorias de ponderação ou sopesamento, ainda hoje
fundamenta decisionismos de toda ordem, com flagrante desrespeito de
legitimidade, pois convicções pessoais, ao que entendemos não se podem colocar
acima do texto sem prejuízo da democracia. Observe-se, por exemplo, a
interpretação de regras procedimentais destinadas à produção da prova que
envolve a concessão de benefícios ao segurado do INSS.
A questão exige, para a concessão de auxílio-doença e a sua conversão
em aposentadoria por invalidez, em caso de constatação de existência de
incapacidade definitiva, a produção de laudo socioeconômico devidamente
previsto no artigo 20,§3° da LOAS. Este critério objetivo, atualmente é
conjugado com um critério social, de sorte que a atual legislação submete a
concessão do benefício a uma dupla avaliação, de caráter médico-social. Isto,
em acordo com a lei n° 11.435 de 2011. Sem prejuízo das regras e dos critérios
objetivos estabelecidos democraticamente no procedimento, o entendimento
majoritário[4]
traduz, com respaldo no livre convencimento motivado, que a exigência para a
concessão se comprova por qualquer meio de prova, ainda que para tanto não se
produza o laudo. Pior que isto: há decisões de toda ordem, que em nome da
instrumentalidade e do sopesamento de princípios constitucionais e processuais,
afastam determinações específicas e a essencial garantia do contraditório para
entregar normas pautadas na consciência do indivíduo. Veja-se, para tanto,
sentenças dessa ordem:
“Relativamente ao pleito, formulado na
contestação, de vista dos autos após apresentação do laudo pericial, registro
que não há prévia intimação das partes para manifestação acerca do laudo
pericial em obséquio a uma prestação jurisdicional mais célere, de forma a
efetivar os princípios da celeridade, informalidade, simplicidade e,
principalmente, economia processual no caso concreto.”.
Sob a ótica de uma nova proposta processual, devemos revisitar antigos
conceitos, de sorte a lhes atribuir uma leitura adequada ao ideal referendado
pelo Estado Democrático e sua promessa de dignidade.
[1] PASSOS, José Joaquim
Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades
processuais, Rio de Janeiro. Forense. 2002.
[2]
JR. Sidnei Amendoeira, Direito Processual Civil, São Paulo, Atlas, 2007, p.174.
[3] BEDAQUE, José Roberto
dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. 2ª edição. Ed Malheiros. p 61.
[4] Esse é o entendimento
da Turma Nacional de Uniformização, qual seja: a comprovação pode ser feita por
qualquer meio idôneo, desde que submetido ao contraditório.
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